sábado, 28 de março de 2015

Esta água, passarinho bebe?


A sabedoria popular desenvolvida na convivência e na observação da Natureza, possibilitou às populações tradicionais a possibilidade de sobreviver, enquanto espécie, ao longo de milênios. Nossos ancestrais que viviam no campo, nas florestas e nas montanhas não bebiam água que passarinho não bebe, não comiam frutos e folhas que os animais não tocavam, corriam para seus abrigos quando viam as manadas em disparada, prenúncio seguro de temporais, ciclones e tsunamis. 

Transmitiam seus conhecimentos às novas gerações, que os retransmitiam aos seus descendentes mesmo quando estes já viviam na polis, na urbe. Mas nos últimos 250 anos, mais especialmente a partir da revolução industrial, quando o modelo de desenvolvimento adotado já começava a produzir pobreza e exclusão social, as populações passaram a se concentrar em grandes aglomerados urbanos, o que tornou a possibilidade de observância dos ciclos e fluxos da Natureza, cada vez mais rara. 

Assim, geração a geração, fomos esquecendo o que nossos ancestrais sabiam e intuíam e nos lançamos na consolidação de um inconseqüente paradigma civilizatório em que fizemos do Oikos, do Lar Terra, apenas uma fonte de recursos naturais.Em nossa ignorância, imaginamos que estes eram inesgotáveis e que podíamos impunemente seguir nossa trajetória de destruição. 

Conquistando novos territórios a cada vez que exauríamos o anterior, extraindo dele suas riquezas minerais, cortando e queimando suas florestas para construir nossas casas e obter a energia que necessitávamos, produzindo riquezas e descartando os resíduos em qualquer local, desde que fosse longe de nós. 

Voltamos as costas aos rios e demais cursos d’água, tratando-os como canais que levariam para longe, muito longe, os desagradáveis restos do que consumíamos. E os anos foram passando... Enquanto procriávamos íamos a busca de mais horizontes, de mais riquezas naturais, mais espaço. Inventamos novas tecnologias, descobrimos a força e o poder da energia fóssil que arrancamos do fundo da Terra, processamos, industrializamos e passamos a queimar diuturnamente nos quatro cantos do planeta. 

A ciência e a tecnologia nos trouxeram mais conforto, eliminaram distâncias físicas, nos possibilitaram cruzar os céus, até para a Lua fomos, e prosseguimos em nossa trajetória de glória e poder até que um dia, de repente (terá sido de repente?), a Natureza, esta que há tanto havíamos domado, nos mostra sua face mais dura, expõe a instabilidade de seus humores. 

Ataca e mata impiedosamente, sem aviso prévio, sorrateiramente, coloca-nos armadilhas. 

Comemos seus peixes e eles nos envenenam, bebemos sua água e adoecemos, vamos à praia e somos afogados por ondas gigantes, seus ventos varrem nossas casas, os rios ora secam, ora transbordam, transformam nossas cidades em depósitos de lixo, (de onde vem mesmo tanta sujeira?), o ar que respiramos nos destrói os pulmões, nos faz arder os olhos. 

Lembramo-nos então daqueles que há décadas vinham nos alertando sobre os perigos à espreita, demo-nos conta de que desde há muito, milhares, milhões de pessoas estavam à margem deste glorioso e triunfante processo de conquista do Universo e já enfrentavam, nas inóspitas regiões em que habitam sérias dificuldades de sobrevivência.

Mas quem se importaria então com a seca, com a fome, com as enchentes, com as pragas, as doenças de veiculação hídrica, com a exclusão, com a tragédia da miséria que assolavam sistematicamente algumas partes do Planeta?

Elas se passavam longe, muito longe de nós... 

Mas agora, quando a ciência que criamos e que julgávamos capaz de solucionar todo e qualquer problema dos humanos, começa a nos mostrar que, pela primeira vez na história da humanidade, está posta em xeque a continuidade da nossa caminhada enquanto espécie no Planeta Terra, sentimo-nos desamparados, indefesos, fragilizados.

A perplexidade toma conta de nós, quando, finalmente, percebemos a íntima relação entre o nosso modelo civilizatório predatório excludente, a destruição do meio ambiente, o rompimento do equilíbrio ecológico que a Natureza teceu em milhões de anos de trabalho cósmico e o caos que ameaça a todos em todos os recantos do mundo, sem distinção de etnia, de classe social, de gênero, de nacionalidade, de escolaridade. 

O que fazer agora, qual o papel de cada um de nós, cidadãos do Planeta? Como prosseguir à luz da tragédia anunciada? Como partir do temor que paralisa para a ação que pode trazer alternativas de caminhos, de soluções? O Dia Mundial da Água é um excelente momento para que façamos esta reflexão. Sem razões para comemorar, dediquemo-nos a pensar como vamos cuidar deste bem imprescindível para a nossa sobrevivência, vida e de todas as espécies que conosco compartilham a Terra. 

Lembremos-nos que Planeta Terra é azul quando visto do espaço, mas não tenhamos ilusões, uma vez que 97% dos 2/3 de sua superfície composta de água é salgada! Dos 3% restantes, a maior parte está nos icebergs em forma de gelo. Assim a água acessível ao consumo humano, que é encontrada em rios, lagos e alguns reservatórios subterrâneos, somam apenas 0,3%, ou 100 mil km³. 

Ao mesmo tempo em que aumentamos o consumo de água em nossas atividades produtivas e em nosso cotidiano, continuamos, de forma inadmissível, poluindo com lixo, esgoto e agrotóxicos, os recursos hídricos de que dispomos. Esquecemos, neste processo perverso, que a quantidade de água na Terra é praticamente invariável há 500 milhões de anos. 

As mudanças que ocorrem são em sua distribuição, pois a água não permanece imóvel, se recicla por meio do Ciclo Hidrológico, cujo equilíbrio encontra-se ameaçado pelo aquecimento global, pelo desmatamento e pela poluição. 

Enquanto isto a escassez de água potável já atinge 20% da população e a ONU afirma que se a população mundial continuar aumentando 80 milhões de habitantes por ano, entre os anos de 2025 e 2050, 40% da população já estará sem acesso à água potável. Somente nos últimos 50 anos, aconteceram em todo o mundo cerca de 500 conflitos armados tendo como causa prima à disputa pela água. 

Metade do leito dos hospitais é ocupada por doenças veiculadas pela água. A cada ano as doenças provocadas por ela causam 03 milhões de mortos no mundo, crianças na maioria, e provocam mais de 1 bilhão de enfermidades. No Brasil, que detém 12% da água doce do mundo, 80% das doenças são causadas ou disseminadas pela falta de saneamento e 40% das torneiras dos nossos lares derramam água com qualidade não confiável. 

São Paulo, a megalópole emblemática, resume em seus números toda fragilidade de um modelo de distribuição territorial que se esqueceu de levar em conta a geografia da Natureza. Aqui vivem 22% da população do Brasil e aqui só estão 1,6% da água de nosso país, consumimos 210 milhões de litros de água por hora (116 piscinas olímpicas) que vamos buscar a mais de 80 km de distância da capital. 

No dia de hoje, deveríamos parar tudo para debater em fóruns, na praça pública, nos palácios, este que é, ao lado das mudanças climáticas, o maior desafio do século XXI, o acesso à água de boa qualidade, o gerenciamento adequado dos recursos hídricos de que ainda dispomos.

A partir da reflexão, do debate, (e do medo), quem sabe tomamos juízo e passamos a agir como cidadãos conscientes, adequando nossas atividades cotidianas a padrões de sustentabilidade, participando ativamente da organização de nossa comunidade, articulando-nos nacionalmente para influenciar políticas públicas sérias e ecologicamente corretas, fiscalizando, reivindicando, sentindo-nos parte da imensa e maravilhosa comunidade biótica. 

*Miriam Duailibi é presidente do Ecoar, uma das principais ativistas ambientais brasileiras da atualidade. Autora de diversos livros, artigos e textos sobre o tema é reconhecida internacionalmente por seus inovadores projetos socioambientais. Fundou em 92 a Ecoar, organização sem fins lucrativos da qual faz parte o Instituto Ecoar para Cidadania, o Centro Ecoar de Educação para Sociedades Sustentáveis e o a Associação Ecoar Florestal, responsável pela produção anual de 2 milhões de mudas para a reposição de florestas no Brasil. 

AUTORIA: Miriam Duailibi 

Sobre o Instituto Ecoar para a Cidadania:

O Instituto Ecoar é uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), sem fins lucrativos, que atua com educação ambiental, cidadania e projetos florestais. Sua missão é contribuir para a construção de sociedades sustentáveis e em equilíbrio com a natureza. 

Fundada por um grupo de ambientalistas e pesquisadores após a Eco-92 e o Fórum Global, é responsável pela implantação de mais de 50 projetos de meio ambiente e educação em todo país. Credenciada pelo IBAMA e DPRN para desenvolver o Programa de Reposição Florestal Obrigatória no Estado de São Paulo, possui dois viveiros que juntos produzem mais de 02 milhões de mudas por ano. 

Por.: Miriam Duailibi
Fonte: Trama Web / Site ANIMAL LIVRE
Matéria publicada em Hospital Espiritual do Mundo